quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

BAIXINHA


Era uma galinha diferente. Mais baixa que as outras, com penas cor de caramelo e um olhar meio tristonho. Andava de um jeito engraçado, feito pata, pra lá, pra cá, rebola-rebola, pra lá, pra cá, cisca, pra lá, pra cá, rebola-rebola. Não ouso dizer que tenha sido meu primeiro amor. Meu primeiro amor se chamava Amelinha, minha professora do Jardim de Infância. E antes da galinha, houve uma cadela, Lassie. Morreu atropelada e sequer foi enterrada. Jogaram-na num terreno baldio e eu criança só pensava: ela está morta e imaginava seus olhinhos puxados sobre a cabeça com pelos curtos e amarelados. Não mais os veria. 

Mas houve o novo amor. A Baixinha. Rebola, pra lá, pra cá, rebola-rebola. Era uma festa minhas tardes com a galinha. Brincávamos, ríamos à toa das histórias, corríamos pelo imenso quintal da casa e eu a imitava pra lá, pra cá. Tinha curiosidade pra saber o que tanto ela ciscava. Queria saber como era sua vida, suas tardes, dormia confortavelmente, tratavam-na bem no galinheiro, as outras galinhas¿ Será que ela também lanchava sozinha no recreio por não conhecer ninguém¿ Tinha curiosidade e passava, assim, horas observando e brincando com a Baixinha.

Baixinha foi minha primeira amiga de verdade. A que nunca falou mal de mim, nunca me olhou com olhos de diferença. E como todo grande amor verdadeiro, o nosso começou a incomodar. As indiretas de que aquela relação era estranha, que o normal era ter um cachorro como animal de estimação. E eu, criança, menino, talvez nem pensasse, mas me perguntava qual, afinal de contas, era o problema. Amor não se escolhe, acontece. Eu amava e era amado e sentia que isso era verdadeiro. 

Crianças são realmente levadas à loucura por adultos sedentos de sadismo. O primeiro horror veio num churrasco de domingo em casa. Eu já sentia que havia um clima estranho ali. Olhos atentos para a minha galinha. Eu a tratei tão bem que realmente era a mais gorda das outras entojadas que freqüentavam o mesmo quintal. Deu vontade de exigir à minha amiga, para sua própria segurança, que fizesse um regime em caráter de urgência. Um dos adultos presentes ali, justamente o que fazia o churrasco, lançou um olhar para ela e afiando os espetos declarou sua intenção: fazer churrasco da galinha.

Meu coração se acelerou. Não é possível! Não tirarão de mim a única amiga que tenho. Não farão essa maldade. Agarrei-a com toda a minha força e correndo pelo conhecido quintal fugi dos algozes. Era eu e ela, num filme particular de Indiana Jones. Fui herói naquela tarde e me orgulhei disso e alimentei um secreto rancor por aquele algoz. Infelizmente, descobri cedo que olhar de criança não derrete ninguém.

O tempo foi passando. Nunca me recuperei daquela tarde e minha alegria das tardes com Baixinha foi se transformando em tensão atenta para que nada fizessem a ela. 

Veio a fatídica tarde. Temeroso com o destino dela eu ia para a escola e voltava correndo para checar que suas penas estavam todas no lugar. Mas em uma dessas tardes, ela sumiu. Me abandonou. Quis ganhar mundo, conhecer outros quintais. Fui abandonado pela primeira vez por um grande amor. Me entristeci, não quis comer, assistia televisão na esperança de que ela retornaria, eu ouviria seu cacarejar atravessando portão adentro. Em minha memória seu olhar, suas penas, seu bico, seu jeito engraçado e gordinho de andar. Fiquei novamente sozinho com meus papéis e lápis de cor. Voltava ao mundo das letras e da imaginação sem companhia. Baixinha nunca mais voltou. 

Dias se passaram. Acostumei-me à idéia. Fui realmente abandonado. 

Almoço cheiroso da minha mãe. Frango frito. Deliciosa refeição. Sabe o que você comeu¿ A Baixinha. Parei por um instante. Estupefato. Eu comi. Mataram a Baixinha e eu comi. E estava gostoso. Eu gostei. Tinha sabor, tempero. O que é mais forte¿ O meu amor ou a minha fome¿ Eu poderia largar a comida, vomitar, espernear. Mas agora Baixinha era morta, pouco adiantaria choro e vela. Já que se sacrificou, vamos homenageá-la. Nada melhor que chupar até os ossinhos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

SOLIDÃO

Foto: Jean Cândido

Nem tanto tempo assim. Nem tanto querer, nem tanto desalento, mas por que o peito sente como se fosse a coisa mais urgente e terrível? Por que o peito sente como se nunca, ou melhor, como se sempre fosse essa mesma coisa lenta, fria e desconsertada? O mesmo som das chaves a rolar pelos dedos, o mesmo barulho dos pés nas pequenas areias despregadas dos paralelepípidos? O que me dá? O que me vem? O que eu tenho? O que não tenho? Por que nunca é claro? Por que sempre é a mesma sensação?

Como se cada música que tocasse soasse como sonata triste de Chopin tocada por um maestro vestido de palhaço. Ao olhar para os olhos desse palhaço há tédio. Tristeza? Não. Tédio. Sensação de inabilidade, impotência, impossibilidade.


E cada vez que se olha ao céu e há uma lua iluminando a praça descuidada pelo descaso e pelo abandono. Abandono. Rima com solidão. Uma rima que não se vê, não se ouve, mas que se sente. Mente quem diz que solidão faz bem. Minto. E não tenho medo. Tenho.


Sentado no banquinho de concreto da mesinha com desenho de tabuleiro de xadrez, sentindo o silêncio da praça antes ocupada pelos velhinhos a jogar ao lado da imagem de Nossa Senhora de Fátima que outro dia várias senhorinhas faziam sua novena eu penso... Penso... Penso... ....


Não há amor que resista à solidão.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

DESSAS MANHÃS

a Z.

Dessas manhãs que seus olhos
fotografem botes estacionados
sob raios únicos de sol.

Dessas manhãs que cães nos observem
e vigem nossos abraços e toques leves
como a areia que se prende aos nossos sapatos.

Dessas manhãs que uma música
toque baixinha em nossos ouvidos
feito trilha sonora de filme bom.

Dessas manhãs que sem dormir
e mal acordados
pedimos ao tempo que se demore um pouco mais

Para que os segundos
sejam longos minutos
os minutos inteiras horas
e as horas, dias intermináveis.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

RECOMEÇAR

Começar do zero. Não, nunca é fácil. Mas o fato é que quando as coisas não saem como esperamos, poucas vezes podemos continuar do mesmo ponto. E não percebemos isso.

É mais fácil e menos angustiante continuar em frente, sem voltar à primeira casa do tabuleiro. E não voltar implica em administrar muito mais problemas.

Corrigir, recompensar, retratar, perdoar. Rever estratégias e reaprender.

Não, nunca é fácil. É difícil porque queremos tudo pra ontem, imediato e paciência não faz mais parte do nosso vocabulário. Queremos agora e nem ao menos sabemos o que queremos.

E erramos. E ameaçamos amores, afetos, amizades, caminhos, futuros. Egoístas demais para reconhecermos nossa incapacidade de acertar o tempo todo e arrogantes demais para percebermos nossas falhas.

E penso que o coração fica assim bagunçado porque não nos damos tempo. Nos afastamos de coisas simples como as lições que a natureza nos dá: a vida obedece o ritmo das estações e cada passo deve ser dado lenta e constantemente.

Para cada momento, uma estação.
Sigo com a certeza de que erro constantemente, mas ao menos assumo algumas vezes .Sei também que tenho paciência, mas às vezes quando vou devagar demais, tudo degringola.

Não, nunca é fácil. Mas é preciso. 

Imagem: "Pescadores" - Jean Cândido Brasileiro

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

LEVA A PAZ

Leva paz, leve paz. E assim é o amor quando acaba. Paradoxalmente leva embora a paz que constrói e ao mesmo tempo traz outra, talvez aquela que tirou dos corações que insistiram em amar.

Desconfio que amor verdadeiro não exista, estamos sempre em desencontros e quando sentimos e temos a rara sensação de sentirem de volta é como um lapso. São pequenos segundos de amor. E que passam e deixam aquela vontade de ser novamente e a terrível e temida angústia de não ser nunca mais.


Ser amado é daquelas inebriantes sensações que temos quando bebemos vodka.(que me mostrem o bar mais próximo). E não é de se admirar que buscamos tais espetaculares pássaros fugidios nos pequenos encontros dia após dia. E temo que em um desses dias os olhares não se cruzem mais porque, como no poema,
resultou inútil.

E se, mais uma vez parafraseando o poeta, os olhos não chorarem mais, o que nos restará? Trabalho, fugacidade, não-encontro. 

Imagem: "Pontes da Vida" de Jean Cândido